sábado, 10 de fevereiro de 2018

Meditação Para do Domingo da Quinquagésima

Pe João Mendes SJ

     O Evangelho de hoje compreende duas partes que se relacionam, pelo menos simbolicamente: o anúncio da Paixão e a cura do cego. Os Apóstolos não compreenderam; escandalizaram-se com a cruz, foram os primeiros a manifestar aquela cegueira, que é afinal de todos nós, diante da necessidade de sofrer.
     Para ser cristão, é preciso abraçar a dor, ter a coragem de a aceitar no centro mesmo da vida. É esse o caminho para a felicidade autêntica; mas é esse anseio de felicidade que, em nós, se recusa a consentir. Daí, a grande dificuldade, e o círculo fechado em que o homem se debate: a cruz atrai e repele. Atrai, enquanto é custoso aceitar o sofrimento, como o caminho da alegria.
    Peçamos pois, a Cristo que nos ensine a sair desta contradição, abrindo os olhos de nossa cegueira, com um milagre tão grande como o que curou o cego.

1. EM QUE CONSISTE O ESCÂNDALO DA CRUZ

      1.As demasias da renúncia. A cruz, e as repugnâncias que ela levanta em nós, não são. somente, a mortificação do que é imperfeito e pecaminoso. O que já não era pouco, e que seria exigência de uma perfeição laica, teoricamente possível, num pagão. É também, a morte de muito do que é legitimo e bom. Consiste em sofrer mais do que seria preciso para praticar o bem e evitar o mal; o que, aplicado a Cristo, em que ele podia remir o mundo de modo menos cruento. É esse, no fundo, o escândalo dos Apóstolos, perante os sofrimentos do seu Mestre, e é o escândalo dos ímpios perante a dor dos inocentes e a penitência dos justos; - que sofram os pecadores, bem está; mas porque há de sofrer a inocência? porque se há de sofrer em vão?

     2. Necessidade da renúncia.  Temos de aceitar a humildade da nossa natureza, que precisa da flagelação do sofrimento para se purificar. Só é perfeito o que sofre. É certo que nem todo o que padece é puro; mas todo o que é bom teve de sofrer. Eis o escândalo: porque há de andar o bem crucificado?.
    É que o dom da integridade não foi restituído em toda a sua perfeição. Quer dizer: o domínio da alma sobre o corpo, ainda mesmo com o auxílio da graça, não é absoluto. De tal modo que, só com uma ajuda especialíssima, se poderiam evitar as pequenas venialidades. Facilmente se intrometem impurezas, na visão e no uso que temos das coisas. Por isso, para assegurar a pureza das intenções, temos que renunciar a muito do que é legítimo. É toda a tradição da santidade da Igreja, pois em todos os Santos, há sempre alguma coisa de excessivo e de loucura, no rigor com que se mortificam. A mortificação é a prova real da virtude autêntica; e os homens de Deus tem todo o empenho em se assegurarem dela.

2. REPARAÇÃO DO ESCÂNDALO

     1. A Vida Divina. Com o sofrimento, não se perde nada, pelo contrário. Ser cristão é receber uma vida divina em troca da humana, a vida eterna em troca da temporal. É essa a troca, realizada na cruz, que está no começo e à raiz da nossa vida. Quando fomos batizados, perguntou-nos o sacerdote, à porta da Igreja: << E a fé para que te serve? - Dá-me a vida eterna >>, respondemos nós. O cristianismo não pode, pois, deixar de ser uma vontade de eternidade. Pois se o cristão é o mercador que vendeu tudo para comprar a pedra preciosa, como não há de andar absorvido com a sorte ultra-terrena do seu jogo arriscado? E quem o poderá levar ao mal? que fazem os homens que sacrificam a vida pela honra? e pelo amor? e pela vaidade de agradar à galeria?
     2. A vida humana. Mas já nesta vida, e no plano meramente natural, e apesar da renúncia, o mercador da pérola começa a ganhar. Porque o Cristianismo e já uma penetração da eternidade no tempo; e a vida eterna de Deus, mesmo na sombra da fé, já concede ao homem o esboço dos dotes do corpo glorioso. A cruz, abraçada com decisão, resolve muitas das mais difíceis antinomias que preocupam os homens - é ver os Santos! Dá-lhes a alegria na dor, a liberdade na submissão, a segurança no abandono, a riqueza no despojamento, a grandeza na humildade, a autonomia no amor. Tudo isto são extremos, igualmente apetecíveis, que os homens procuram, inclinando-se , ora para um lado ora para o outro, e caindo em todos os excessos. Só a cruz de Cristo concilia as oposições, e harmoniza o irreconciliável.

CONCLUSÕES

     1.Cristo crucificado. Depois que Deus foi pregado numa cruz, e assumiu a dor humana, para transfigurar, já o escândalo do sofrimento da inocência se desvanece. Tudo ganha sentido, tudo se torna solidário. Os que tem culpas e impurezas, sofrem para as reparar e purificar; os que as não tenham, mesmo as crianças, sofrem para reparar as dos outros. Mas já não há sofrimento em vão. Porque toda a dor se pode unir à de Cristo Crucificado, e formar, com ela, a grande obra de solidariedade humana, que é a Redenção da Culpa.
     2. O Cristianismo é, assim, um novo sistema de valores. O cristão, que aceita a realidade da Culpa e da sua redenção pela cruz, aparece no mundo como um louco que construísse o universo à sua maneira. Não concorda com os outros homens, é um estranho que aprecia o que os outros desprezam, e despreza os que os outros apreciam. Troca os bens palpáveis pelos impalpáveis, este mundo pelo outro mundo. Mas só a luz da Fé, penetrada de Caridade, fará que a cruz se nos torne amável e o seu mistério conatural. A grande cegueira, a que nos esconde o mundo sobrenatural, vem das repugnâncias que em nós levanta o dever da renûncia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Todos os comentários serão analisados antes de serem publicados.