quinta-feira, 4 de maio de 2017

Rainha do Céu


(Retirado da Legenda Áurea, nº 46)

Certa feita, na época do papa Pelágio II, o rio Tibre transbordou tanto que ultrapassou os muros da cidade e derrubou muitas casas. Ao baixarem, as águas do Tibre deixaram nas margens muitas serpentes e um grande dragão, vindos do mar, que corromperam o ar com sua podridão e provocaram uma pavorosa peste que atacava a virilha, parecendo flechas que caíam do Céu e atingiam todo indivíduo.

O primeiro atingido foi o papa Pelágio, que logo morreu, e o mal fazia tantos estragos entre o povo que muitas casas da cidade ficaram vazias devido à morte de seus habitantes. Como a Igreja de Deus não podia ficar sem chefe, o povo todo elegeu São Gregório, apesar de sua renitência. Como a peste continuava a devastar a população, mesmo antes de ser consagrado ele fez um sermão ao povo. ordenou uma procissão, instituiu o canto das litanias* e determinou a todos os fiéis que orassem a Deus com mais fervor do que nunca.

No momento em que o povo estava reunido para as preces, o flagelo foi tão violento que em uma hora pereceram noventa pessoas. Mas isso não o impediu de continuar a exortar o povo a não parar de rezar enquanto a misericórdia de Deus não afastasse a peste. Terminada a procissão, quis fugir mas não pôde, porque dia e noite havia guardas nas portas da cidade. Assim, ele mudou de roupa e com a ajuda de alguns negociantes escondeu-se num barril para ser tirado da cidade numa carroça. Foi direto para uma floresta, procurou uma caverna para se esconder e ali ficou três dias. Todos estavam à sua procura, quando um anacoreta teve a visão de uma coluna de fogo que descia do Céu sobre o lugar em que ele se escondera, coluna pela qual subiam e desciam anjos. O povo pegou-o, levou-o e ele foi consagrado sumo pontífice.

Basta ler seus escritos para se convencer de que foi contra sua vontade que foi elevado a tal honraria. Eis como ele se exprime numa carta ao nobre Narsés: "Ao me escrever sobre a doçura da contemplação, você faz renascer em mim os gemidos de minha ruína, porque perdi a calma interior ao ser colocado neste cargo sem merecê-lo. Saiba que é tanta a dor que sinto que mal posso dizê-la (...)".

(...)

Como a peste ainda fazia estragos em Roma, ele ordenou que na época da Páscoa fosse feita , como de costume, uma procissão em torno da cidade cantando litanias. Com grande reverência levou-se nessa procissão uma imagem que está em Roma , na igreja de Santa Maria Maior, e que dizem representar com muita semelhança a bem-aventurada Maria sempre virgem, por ter sido pintada por Lucas, médico e excelente pintor. O ar corrompido e infectado afastava-se para abrir caminho à imagem, como se não pudesse suportar a presença dela, de forma que por onde a imagem passava ficava uma maravilhosa serenidade e o ar readquiria toda sua pureza. Conta-se que se ouviram então as vozes do anjos cantarem diante da imagem: "Alegre-se Rainha do Céu, aleluia, porque Aquele que você mereceu carregar dentro de si, aleluia, ressuscitou, aleluia". A isso São Gregório Magno acrescentou: "Reze a Deus por nós, te rogamos, aleluia". Então São Gregório viu, sobre o castelo de Crescêncio, o anjo do Senhor limpando uma espada ensangüentada, que pôs de volta na bainha. São Gregório compreendeu que a peste tinha cessado, o que de fato aconteceu. O castelo recebeu então o nome de Sant'Angelo**.


* Litania é uma prece litúrgica de súplica, muito usada pelos medievais especialmente durante a procissão dos três dias anteriores à Ascensão e chamada de Rogações.

** Trata-se, ainda hoje, de um dos mais célebres monumentos de Roma. Construído em 130 para ser mausoléu do imperador Adriano, ali foram sepultados todos seus sucessores do século II. Em 271 Aureliano transformou-o em fortaleza, função que teve por toda Idade Média, servindo de prisão e de principal refúgio para o papa quando das freqüentes revoltas que a cidade de Roma conheceu na época.

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