sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Pequena história de Nossa Senhora de Lourdes, Parte III



(Continuação das postagens anteriores: Parte I, Parte II.)

... nenhuma questão teológica estava envolvida ainda e os clérigos continuaram desinteressados.

Porém, durante a 16ª aparição, em 25 de março, festa da Anunciação, uma questão religiosa inevitável entrou nos acontecimentos dramáticos. Na manhã desse dia, Bernadete acordou muito cedo, com "grande desejo" de revisitar a gruta. Os pais fizeram-na esperar até as 5 horas da manhã, quando ela saiu com a família, seguida por um grupo grande de pessoas. Bernadete tinha ido a Massabielle todos os dias desde a última das aparições da quinzena, mas durante o que se chamou de "calmaria de três semanas" a aparição não se deixou ver. Desta vez, Aquero apareceu.

Embora os detalhes registrados divirjam quanto ao porquê, desta vez parece que Bernadete estava disposta a descobrir quem a Senhora era e lhe fez três vezes esta pergunta: "Senhora, quer ter a bondade de me dizer quem é, por favor?". Aquero começou a rir. Mas quando Bernadete repetiu a pergunta pela quarta vez, a Senhora parou de rir, sorriu e disse no dialeto Bigourdan as palavras atroadoras: "Que soy era Immaculada Concepción".

Ao ouvir isso, Bernadete levantou-se imediatamente e, seguida por um grande cortejo de pessoas ansiosas, apressou-se a voltar à cidade, repetindo as palavras em voz alta inúmeras vezes, a fim de não esquecê-las. Ao chegar à cidade, ela e um grupo de olhos arregalados irromperam na casa do padre Peyramale. Bernadete levantou os olhos para ele, que abaixou os seus para olhá-la e ela disse simplesmente: "Eu sou a Imaculada Conceição".

                                                                                      

Padre Peyramale ficou chocado, pois ali não só havia uma questão religiosa, mas uma questão religiosa importante, sobre a qual era impossível que a Bernadete analfabeta soubesse alguma coisa.

A questão é complicada, desagradável mesmo. Desde o século XIV, o dogma da Imaculada Conceição da Virgem Maria era fonte de controvérsias. Admitia-se que Jesus fora concebido de maneira imaculada, isto é, sem pecado, desde o momento da concepção. A questão era se Maria também fora concebida imaculada.

A Senhora havia finalmente se identificado como a "Imaculada Conceição"  o que significava que ela era, na verdade, a Santíssima Virgem Maria, Mãe do Salvador e Mãe de toda a Igreja Católica Romana também. Não há dúvida que Bernadete não entendia nada disso, pois o sentido teve de lhe ser explicado muitas vezes  e, antes de entrar para a escola local das Irmãs de Nevers, onde aprendeu a ler e escrever, ela nunca entendeu muito bem suas implicações.

                                                                                      

Durante algumas semanas, a gruta foi barricada pelas desgastadas autoridades, não tanto para desencorajar a devoção, mas para conter os problemas de imundície e saúde pública provocados por milhares de visitantes. A preocupação maior era com um surto de cólera.

Ninguém realmente sabia o que fazer sobre o lugar e iniciaram-se discussões calorosas entre as autoridades locais e os devotos sobre o que devia ser construído ali. Logo que a fonte começou a jorrar e curas foram relatadas, artesãos locais projetaram, para conter a água, um tanque equipado com canos de descarga e uma tábua para colocarem velas.

Fendas foram executadas na gruta, nas quais dinheiro podia ser inserido e depois recolhido e entregue  ao antes relutante padre Peyramale. Todos os dias era recitado o rosário e mais de cinqüenta pessoas alegaram ter visto a Virgem. Os devotos tornaram-se incontroláveis e, no início de maio, o prefeito de Tarbes ameaçou prender e pôr na cadeia todos os que "tivessem visões". O delegado de polícia de Lourdes confiscou todos os objetos votivos e, em junho, a gruta foi fechada, embora os muros fossem derrubados diversas vezes por devotos vigorosos.

Enquanto essas dificuldades continuavam sem solução, a notícia da aparição da Virgem Santíssima e da água milagrosa se espalhou por toda a França.

Um acaso acabou por solucionar as dificuldades. Em meados de agosto, a família imperial estava na residência de verão, em Biarritz, a apenas 150 quilômetros de Lourdes. Ali, o príncipe imperial, filho do imperador Napoleão III, então com 2 anos de idade, "contraiu perigosa insolação acompanhada da ameaça de meningite".

O imperador ou, é mais provável, a imperatriz enviou a preceptora do infante a Lourdes, onde ela falou primeiro com padre Peyramale e depois com Bernadete. A preceptora foi, então, até a gruta e, em nome do imperador, ordenou que os guardas enchessem um garrafão com a água, tirando-a o mais de perto possível do centro da fonte. Os guardas esforçaram-se ao máximo para cumprir essas ordens. O infante real foi borrifado várias vezes com a água e prontamente se recuperou.

Em outubro, cheio de gratidão, o imperador Napoleão III em pessoa ordenou que os funcionários de Tarbes e Lourdes removessem permanentemente as barricadas em volta da gruta  o que era mais que uma sugestão para não interferir no acesso público a ela.

Em novembro, o bispo de Tarbes nomeou uma comissão de inquérito que levou quatro anos para realizar todas as suas audiências. Além das questões teológicas envolvidas, a comissão levou, sem dúvida, em conta o interesse decisivo do imperador, as oferendas abundantes e as crescentes vendas de imagens votivas. "Desde o início" a comissão "ficou profundamente impressionada" com a sinceridade de Bernadete e sua "firmeza e lucidez".

Em 1862, monsenhor Laurence, bispo de Tarbes, publicou a conclusão esperada:

"Julgamos que Maria Imaculada, Mãe de Deus, realmente apareceu a Bernadete Soubirous em 11 de fevereiro de 1858 e em dias subseqüentes, 18 vezes ao todo. Os fiéis têm motivos para crer que isso é incontestável.

Autorizamos a devoção a Nossa Senhora da Gruta de Lourdes em nossa diocese... [e], em conformidade com os desejos da Virgem Santíssima, expressos mais de uma vez durante as aparições, propomos a construção de um santuário no terreno da gruta que o bispo de Tarbes acaba de adquirir."

O documento do bispo também proclamou milagrosas sete das curas que aconteceram em 1858. A resposta dos veículos de comunicação, que já era grande, tornou-se enorme.

                                                                                      

Em 1862, Achille Fould, financista judeu e ex-ministro da fazenda francês, comprou nas proximidades de Lourdes uma propriedade que pretendia desenvolver. Apressou-se a convencer a Companhia Ferroviária Meridional a fazer passar por Lourdes e por sua propriedade a ferrovia que estava em construção de Tarbes a Pau.

Dessa maneira, os cidadãos pobres de Lourdes viram-se diretamente ligados por estrada de ferro ao resto do continente  e ligados para todo o sempre a fontes de renda. Agora, romarias organizadas podiam chegar de trem, o que faziam e continuam a fazer em número cada vez maior. Esses romeiros precisavam de hotéis, restaurantes e outras comodidades.

Assim, surgiu o maior santuário de cura da história européia. Milhares de curas têm ocorrido ali, embora só 64 tenham sido oficialmente reconhecidas até 1970.

                                                                                      

Enquanto a comissão estudava a questão, em julho de 1860, Abbé Peyramale e o prefeito de Lourdes persuadiram a madre superiora do convento das Irmãs de Nevers a aceitar Bernadete como interna.

Bernadete tinha 16 anos e ainda era "ignorante como um bebê no berço". Assim, com tristeza, ela deixou a família  uma família cheia de brios que, apesar de desprovida de recursos, recusou-se a aceitar qualquer ajuda, exceto a casa mais salubre conseguida pelo Abbé.

No convento, Bernadete teve de receber muitos visitantes, pois os inquéritos e as investigações estavam em andamento. As irmãs admiravam sua humildade e resistência durante as entrevistas cansativas. Esta vidente comportava-se como instrumento apropriado da Mãe Santíssima.

Sofria cada vez mais ataques de asma e, na primavera de 1862, os pulmões se inflamaram. Quando recebia a unção dos enfermos, abriu os olhos, pediu água da fonte, bebeu-a e ficou curada.

Mais tarde foi transferida para a sede da ordem em Nevers, 500 quilômetros ao norte de Lourdes onde, como irmã Marie-Bernard, permaneceu humilde e obscura até a morte, em 16 de abril de 1879, aos 32 anos de idade. No mesmo ano, o único filho de Napoleão, o ex-príncipe imperial, apelidado "Loulou", foi atravessado por uma lança e morreu, quando lutava pelos interesses britânicos nas guerras zulus na África. Tinha 21 anos de idade.

                                                                                      

O corpo de Bernadete foi exumado pela primeira vez em 22 de setembro de 1909. Estava intacto e teve início o processo de beatificação. Foi novamente exumado em 3 de abril de 1919, quarenta anos depois da morte, e continuava intacto  exceto por ligeira descoloração na face, que foi corrigida com cera preservadora.

O corpo foi, então, colocado em um esquife de vidro e durante muitos anos ficou exposto à visitação dos fiéis e dos turistas, na capela do convento em Nevers. Em 1933, ela foi canonizada como Santa Bernadete.



Em 1906, a gruta e a basílica foram confiscadas do bispado de Tarbes pelo governo francês e, em 1910, sua posse foi cedida à municipalidade de Lourdes. A primeira visita papal ao santuário da aparição de Nossa Senhora da Gruta de Lourdes ocorreu em 1982.

O mais famoso santuário de cura do mundo, há muito tempo um lugar vasto e esplêndido, recebe anualmente a visita de mais de 15 milhões de pessoas.

Fim

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